O ensino após a pandemia: a importância da universidade na construção do futuro

Artigo de José Miguel Garcia Medina*

Como será o ensino após a pandemia? Retornaremos ao “velho” normal, com estudantes vindos de todos os cantos, às vezes de locais muito distantes, reunindo-se em turmas em salas de aula com horários fixos, para ouvir o professor?

Durante a pandemia, as reuniões para as aulas ocorreram (e ainda podem continuar a ocorrer por algum tempo) por videoconferência. Ensaia-se, agora (estamos no alvorecer de 2022), o retorno às salas de aula. Ainda com preocupação, exigência de exames de saúde, uso de máscaras, ambientes bem ventilados, entre outras medidas de segurança.  Sem dúvida, o contato pessoal e mais próximo entre professores e alunos é importante. Em alguns cursos, a presença em sala de aula talvez seja indispensável e insubstituível, até para a totalidade das disciplinas. No entanto, as experiências recentes permitem considerar que as práticas de ensino não precisam necessariamente retornar, em termos peremptórios, ao modelo utilizado até 2019, deixando de lado a experiência do ensino remoto que, embora emergencial, já dura dois anos.

Em artigo interessante intitulado “As universidades devem abraçar novas maneiras de aprender – Estudar deve ser um processo vitalício e variado, não uma camisa de força de três anos imposta aos 18” (tradução livre de Universities must embrace new ways to learn – Studying should be a lifelong and varied process, not a three-year straitjacket imposed at 18), publicado em 30/12/2021 no periódico britânico The TimesMartin Rees chama a atenção para problemas que ocorrem no Reino Unido e que podem ser ainda mais graves, no contexto brasileiro.

Os modelos de aula baseados exclusivamente em exposições orais unidirecionais certamente dispensam o contato presencial. Isso é o que ocorre em aulas dirigidas a um número muito grande de estudantes. Se ao aluno restará apenas ver e ouvir uma aula sem possibilidade de interagir com o professor, senão de forma muito limitada, pouco se perde se a transmissão da exposição se der por videoconferência. E essas aulas, uma vez gravadas, podem ser assistidas pelos alunos que não puderam acompanhá-la ao vivo. Podem, também, ser assistidas novamente, se for o caso.  Perde-se muito tempo com o deslocamento de casa ou local de trabalho até a universidade, sobretudo em grandes cidades. Além disso, gasta-se muito dinheiro com transporte.

Isso não significa, devemos insistir, que o ensino deva ser integralmente on-line, sobretudo no que se refere a cursos de graduação. A presença do professor presencial e ao vivo ainda se mostra indispensável, ao menos em relação à maior parte dos cursos e das disciplinas. Mas o ensino pode experimentar novas formas, daqui em diante, contemplando em ao menos alguma parte em outro formato, além do exclusivamente presencial.

É necessário haver maior flexibilidade.

O ensino deve ser versátil e acompanhar as mudanças que experimentamos nesses últimos tempos. Essa versatilidade deve ser aplicada também ao conteúdo do ensino. Trabalhamos com currículos amarrados e fechados, que tomam dos estudantes longos e importantes anos de suas vidas (5 anos, no caso do curso de direito, aqui no Brasil) para a realização de atividades no futuro que, supõe-se, reproduzirão aquilo que foi ensinado em sala de aula. Mas tudo muda muito rapidamente e nossas vidas são cada vez mais complexas (não apenas no sentido de difíceis, mas sobretudo no sentido de que elas são permeadas de vários elementos diversificados que interagem em um sistema em constante mutação).

Os currículos devem se tornar mais flexíveis, e os cursos, menos extensos. Aquele que atua como advogado pode sentir a necessidade de retornar à universidade para cursar economia, administração, psicologia ou biologia. O economista, após algum tempo, nota que em seu dia a dia precisará ter também uma boa formação em filosofia. Claro que isso não se aplica a todos os cursos. Mas já se mostra imprescindível pensar em modos de viabilizar ao egresso o retorno aos bancos – reais ou virtuais – da universidade, para uma formação adicional ou, ao menos, complementar.

Muitos de nós ingressamos na universidade muito cedo (em torno dos 18 anos de idade), tentando identificar algo para o que somos vocacionados ou que nos propicie ter uma profissão que remunere satisfatoriamente. Mas nem todos (arrisco-me a dizer, a imensa maioria não) sabem a sua vocação a essa idade (se é que algum dia um de nós a descobrirá). Leciono para alunos que estão no 4.º ano da faculdade de direito e fico angustiado quando percebo algum aluno que não quer estar ali, mas que agora é tarde e ele tem que terminar o curso. Terá ele coragem e, mais importante, condições financeiras de dar início a outro curso universitário?  Que dizer da escolha da “profissão certa”? Se ingressar na faculdade em 2022, a estarei concluindo, se tudo der certo, em 2026. A profissão que me fez escolher o curso certamente não será a mesma. Em cinco anos, ela poderá ter se modificado muito, ou, até, encontrar-se em vias de se tornar obsoleta. A universidade se adaptará a esse modelo. Não para ser domesticada, abandonando tudo o que se fez até aqui. Se houver sabedoria, ajudará a moldar o “novo” normal, tornando-o mais justo e democrático.

A universidade tem a importante missão de contribuir para a reconstrução da sociedade do presente e do futuro, sociedade essa que foi devastada pela pandemia e por tudo que com ela se manifestou. Daí ser imperioso fortalecê-la, para fazer frente a esses desafios.

E aqui chegamos a outro ponto a que se refere Martin Rees em seu artigo e que, também, tomo de empréstimo para tratar do que sucede no contexto brasileiro. Mesmo cursos competitivos devem poder ser acessados por aqueles que não tiveram condições de estudar nas melhores escolas. É necessário melhorar a qualidade das escolas, a remuneração dos professores, etc. Isso, claro, é indispensável. Mas, hoje, em uma sociedade desigual como a brasileira, chegar ao final do ensino médio já é, para muitos, uma grande vitória, pois ter condições de, a duras penas, concluir esse ciclo já deve ser considerado um grande feito. Mas a vitória, aqui, deve ser tida com um novo sentido, ou melhor, em duplo sentido, de significado e de direção. A conclusão dos ensinos fundamental e médio deve ser vitoriosa por ter, de fato, colaborado para a formação do aluno, contribuindo para que tenha conteúdo para seguir em frente. Claro que continuará a haver cursos mais competitivos e nem sempre haverá vagas para todos. Mas deve-se criar um ambiente que permita a qualquer estudante ter condições de concorrer a essas vagas, independentemente de onde tenham se instruído nos ensinos fundamental e médio. Até lá, um sistema justo de cotas há de mitigar, gradualmente, a desigualdade que se manifesta na base do ensino.

O ensino, em parte remoto de cursos mais versáteis e adaptáveis, também pode contribuir, aqui. Durante parte de meu curso de direito, eu acordava às 4 da manhã para conseguir embarcar no ônibus que me levava ao trabalho, um banco que existia no centro de Maringá (aliás, também o trabalho que eu fazia como bancário não existe mais). Batia ponto às 6h da manhã. Mas estudava à noite, das 19h às 23h. Não estudava bem, nem trabalhava bem, pois vivia cansado. Certamente a realidade de muitos brasileiros que estão na faculdade é parecida ou pior que essa. Se eu estivesse começando a estudar direito hoje, que dizer de um curso com currículo inflexível, já programado sobre o que deverei estudar nos próximos 5 anos? Não seria melhor haver uma formação jurídica básica e fundamental em poucos anos, seguida por formação mais específica e profunda na área em que pretendo atuar depois, profissionalmente? Não seria melhor poder assistir a parte das aulas por videoconferência, e ainda uma outra parte em horário que melhor se adaptasse às contingências de minha vida pessoal, de meu trabalho, de minha família?

A universidade deve ser inclusiva.

Nesse ponto, a pandemia chamou a atenção para problemas que já existiam, mas foram agravados. De acordo com o artigo 208, caput, inciso III da Constituição Federal, o atendimento educacional a pessoas com deficiência se dará “preferencialmente na rede regular de ensino”. Essa disposição é condizente com outras regras constitucionais e convencionais que tratam da inclusão da pessoa com deficiência. O conceito normativo de pessoa com deficiência, presente na Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e na Lei 13.146/2015, é social. Compreende-se, assim, que deficientes não são as pessoas que têm algum impedimento, mas deficiente é a sociedade, que cria e mantém limites e impedimentos àquelas pessoas. Trata-se, aqui, de não criar barreiras físicas, mas não só. A universidade tem autonomia didático-científica (“libertas docendi”, cf. artigo 207, caput, da Constituição Federal) e deve alinhá-la ao princípio estabelecido no artigo 208, caput, inciso III da Constituição Federal.

A universidade não deve ser apenas meio de se alcançar condições dignas de existência; mais que isso, a universidade deve ser o lugar em que a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais são reconhecidos e realizados materialmente.

A Constituição Federal reconhece que a presença de processos mecânicos ou eletrônicos tendentes a interferir no trabalho humano é algo com o que se deve lidar, tendo essa circunstância como inevitável; estabelece, no entanto, a necessidade de proteger o trabalhador contra a automação (artigo 7º, caput, inciso XXVII). Interessa o modo como a automação propicia a mudança do próprio trabalho – e, consequentemente, das profissões em geral. As transformações tecnológicas sempre fizeram, ao longo da história humana, com que profissões surgissem e se extinguissem, ou que fossem alteradas. Os tempos atuais revelam que essas mutações tendem a ocorrer de forma cada vez mais rápida e profunda. Muitos trabalhos que antes dependiam da atuação humana tendem a ser realizados, cada vez mais, por máquinas (como em casos de trabalhos físicos) ou por programas de computadores (em que se revela que a inteligência artificial é capaz de tomar várias decisões que, antes, dependia de seres humanos). Fenômenos similares são verificados na advocacia, na medicina e em outras áreas, em que a inteligência artificial vem sendo cada vez mais utilizada. Tais mudanças não devem se operar de modo a sacrificar a existência de trabalho humano, pois isso contraria a dignidade da pessoa (artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal).

É necessário conceber mecanismos que propiciem a atualização do trabalhador, a fim de poder fazer frente às evoluções tecnológicas ou, ainda, que permitam que ele tenha condições de se adaptar a uma outra profissão, assegurando-lhe condições de continuar a trabalhar com dignidade. A universidade também tem muito a contribuir para que esse propósito seja alcançado.

Claro que temos um longo e difícil caminho a percorrer, para superar ou, ao menos, mitigar tudo o que sofremos em razão da pandemia. Mas, ao invés de apenas caminhar por algo já construído, devemos construir a trajetória a ser percorrida. A universidade desempenha destacado papel na construção desse caminho, e ela deve tomar a iniciativa de fazê-lo. Não sendo assim, ficará apenas a reboque das mudanças impostas por outros agentes sociais e econômicos, que poderão sufocá-la e, no extremo, torná-la obsoleta.


José Miguel Garcia Medina é doutor em Direito das Relações Sociais pela PUCSP, sócio fundador do escritório Medina Guimarães Advogados, professor titular no curso de Direito da Universidade Paranaense e professor associado no curso de Direito da UEM. Autor de vários livros e artigos, foi um dos contemplados com o Prêmio Jabuti na categoria “Direito”, com a obra Execução (2.º lugar, em 2009), e finalista do mesmo prêmio com outras de suas obras.
Foto: Assessoria de Comunicação

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